Uma viagem pelo sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás
Uma viagem pelo sertão:
200 anos de Saint-Hilaire em Goiás
“Gosto deste velhinho”. Declarou o poeta Carlos Drummond de Andrade em uma crônica publicada em homenagem ao bicentenário do nascimento de Saint-Hilaire (1979, p. 5). Para o escritor mineiro era “um caso de simpatia pessoal e também de gratidão. Entre os viajantes estrangeiros do começo do século 19, ele me interessou mais do que qualquer outro, pelo que viu e contou de Minas. E não só de Minas: do Espírito Santo, de Goiás, de São Paulo, do Sul do Brasil. Graças a ele viajei por essas terras, conheci seus moradores, seus costumes, plantas, animais e minerais sem precisão de sair de casa.” Às suas palavras, o poeta viajou, imaginariamente, apoiado nas narrativas do naturalista.
Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire nasceu na cidade francesa de Orleans em 4 de outubro de 1779. Sua biografia é conhecida: nascido de uma família nobre, teve uma formação inicial no Colégio Militar de Pontlevez. Após a Revolução Francesa esteve fora da França e retornou em 1802 onde estudou botânica no Museu de Ciências Naturais. Devido a um convite do então embaixador da França na Coroa Portuguesa veio para o Brasil em 1816.
Adentrando nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás, SaintHilaire penetrou na grande nebulosa formada pelos sertões do Brasil. Uma palavra prenhe, desde os primórdios da colonização, de pesada carga semântica social e histórica. Sertão era o gentio, o desconhecido, o nada a ser conquistado e domado. Pelos caminhos rumo ao sertão Saint-Hilaire partiu a (re)descobrir o Brasil. Como herdeiro do Iluminismo de seu tempo se desdobrou para registrar, catalogar, sistematizar e hierarquizar o que viu. Evidentemente, não lhe era possível desembaraçarem-se de convicções pessoais, formações acadêmicas e cargas simbólicas pessoais europeias. No complexo jogo das alteridades – como os demais viajantes a olhar o Brasil no século XIX - as diferentes biografias produziram diferentes narrativas: olhares sempre deslocados, ainda que portadores a priori de uma intenção científica, objetiva e de acordo com seus próprios princípios de coerência e consistência analítica. Como os demais, os registros de Saint-Hilaire são registro do que suas culturas permitiam-lhes ver.
Dos viajantes europeus que passaram por Goiás Saint-Hilaire talvez tenha sido o que emitiu os julgamentos que podem ser inscritos entre os mais ácidos. Logo no prefácio do seu relato à Viagem à Província de Goiás, ele deixou claro que não de se devia julgar o interior da América segundo padrões europeus. Feita esta observação, em seguida ele se contradiz e avisa ao leitor, que a avaliação de Goiás não seria favorável. O território de Goiás, se comparado com o da província vizinha de Minas Gerais, era uma infortunada região entregue por longos anos a uma administração quase sempre imprevidente. O francês viu em toda parte indolência, desânimo e preguiça que levava os fazendeiros à situação de penúria e miséria que os embrutecia. Sobre todos pesava uma apatia em relação a tudo e a todos. Nem mesmo as pessoas de alguma instrução escapavam e a única exceção seria o Comendador Joaquim Alves de Oliveira (1770-1851) e sua propriedade denominada por ele de fazenda modelo.
Saint-Hilaire estava imbuído do sentido civilizatório como muitos cientistas viajantes de sua época. Diversas são suas colocações no sentido a “melhorar” as situações que ele identificava como decadentes. Não deixou escacar nada: economia, propriedade, estradas, relações humanas, hábitos e costumes passaram por seu escrutínio. Seu relato termina reforçando o papel da missão civilizatória da qual ele se via como partícipe. Estava convicto de que a divulgação dos relatos de suas viagens e suas impressões sobre o sertão – divulgando as mazelas, as dificuldades e as potencialidades – poderia mover alguém rumo a alguma ação propositiva. Estava convicto igualmente da relevância de sua sistemática coleta e registro do mundo natural: ao menos registrava exemplares que ele identificou como passiveis de extinção. Neste sentido Saint-Hilaire estava certo. Não são poucos os exemplares da fauna e da flora extintos ou comprovadamente em vias de extinção.
Consciente disto, um grupo organizado pela pesquisadora Lenora Barbo se propôs a revisitar a região explorada por Saint-Hilaire em termos sociais, culturais, históricos, econômicos e ambientais. Através de diversos “olhares” contemporâneos, estudiosos de diversos campos do conhecimento, pretendeu-se revisitar os “olhares” desencadeados pela viagem no século XIX. A partir daí o grupo principiou a refazer, simbolicamente, a viagem por Goiás.
A publicação do livro Uma Viagem pelo Sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás não foi o único resultado desta iniciativa. Foi localizado um mapa que serviu de base cartográfica para a sistematização das informações sobre o percurso. Itinéraire des Cinq Voyages accomplis dans linterior du Brésil 1816-1822 par Aug. de Saint-Hilaire seria um documento à leitura e interpretação das observações feitas pelo naturalista. Em 2020 foi realizado, na Universidade Federal de Goiás, o seminário Os Caminhos de Saint-Hilaire em Goiás: rotas e roteiros de pesquisa. Após isto os diversos pesquisadores debruçaram-se à elaboração de ensaios em suas respectivas áreas.
A coletânea é composta em cinco partes, reunindo textos de 24 autores. A apresentação, feita por Marc Pignal, pesquisador do Museu Nacional de História Natural de Paris, coloca que, mesmo passados duzentos anos de sua estadia em Goiás, existem perguntas não de todo respondidas. A primeira parte, está dedicada aos traços biográficos, aos itinerários na cartografia oitocentista, ao percurso de Minas até Goiás e às expedições no início do século XIX. A segunda, dedicada à arquitetura e aos povoados, inclui ensaios observando as narrativas sobre as cidades goianas, as observações referentes à produção arquitetônica, os arraiais da Picada de Goiás e as contribuições que subsidiaram o reconhecimento do patrimônio cultural goiano. A terceira parte, dedicada às paisagens culturais, inclui análises a entender a música, o imaginário que formavam o ambiente onde o naturalista esteve e as paisagens de Ouro Fino a embasar o que se pode entender como “goianidade”. A quarta parte, analisa a presença dos indígenas, as possibilidades alimentares e as releituras do desenvolvimento urbano a partir das observações do francês no Engenho São Joaquim. A quinta parte analisa o cerrado, as análises da vegetação, o gado, as paisagens campestres no século XIX e a geodiversidade do cerrado goiano.
Como obra coletiva, a análise dos argumentos do livro é plural. Só pode ser feita à luz de cada autor. Diversas são as linhas argumentativas que seguem às temáticas agrupadas na obra. Mas o fio condutor que costura os grupos temáticos é claro. Este fio principia da visão ampla ancorada na geografia e na cartografia para, a partir daí reduzir o foco das observações. Parte da definição do trajeto, ao trajeto e aos objetos deste percurso. Podemos dizer que reproduzem de maneira análoga o procedimento que Saint-Hilaire se propôs a fazer, partindo de um mapa e estabelecendo um percurso, um itinerário, fazer o percurso, ver as paisagens e identificar os objetos. Como ele os autores partiram de uma cartografia e chegaram, por exemplo, à arquitetura e à música produzida naqueles locais.
Cada uma das partes da coletânea recebeu a delicadeza de incluir ilustrações do artista goiano Elder Rocha Lima. Um enriquecimento visual do texto a permitir ao leitor algumas imagens dos locais que Saint-Hilaire viu.
Para um dos autores da coletânea, o Doutor em religião Rafael Lino Rosa, usando nossa imaginação e tendo como base o imaginário que moveram viajantes como Saint-Hilaire, podemos imaginá-lo vendo as terras do sertão. Podemos perceber seu olhar de estranhamento diante de um lugar que talvez fosse o mais distante de sua terra natal. Podemos perceber as energias que o moveram a atravessar o Atlântico rumo a um regiões que ele pouco, ou nada, sabia.
Depois de passados duzentos anos a viagem de Saint-Hilaire por Goiás ainda suscita investigações, permite abordagens, leituras. Permite abordagens a serem inscritas em outras bases e confrontações com outras fontes. Processo contínuo de se rever e (re)fazer História.
Como Saint-Hilaire, os autores realizaram uma viagem pelo sertão onde o percurso é mais relevante que a chegada a algum lugar. Como ele, percebem que o os lugares aparecem como um objeto científico, estético e sensível que comporta modelos de seleção a analisar as camadas de significados constituintes do próprio objeto. O grupo de pesquisadores reunidos sob a coordenação da pesquisadora Lenora Barbo certamente gosta – como Carlos Drummond de Andrade - do “velhinho” francês que passou pelo sertão.
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Meu amigo Saint-Hilaire. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 16 out. 1979. Caderno B. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/206977. Acesso em: 20 ago. 2021. BARBO, Lenora (org.). Uma viagem pelo Sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás. Jundiaí: Paco Editorial, 2021.
RESENHAS 210 albuquerque: revista de história, vol. 13, n. 26, jul. - dez. de 2021 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior
1 Possui graduação em Arquitetura pela Universidade Católica de Goiás (1991), Brasil, mestrado em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2008), Brasil, e doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás (2011), Brasil. Foi Chefe do Departamento de Planejamento Urbano da Prefeitura de Jataí (GO) onde teve a oportunidade de desenvolver projetos no âmbito municipal além de coordenar o processo de Planejamento e Implantação do Plano Diretor local. Atualmente é professor do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Goiás, Câmpus Jataí, Brasil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9208712284117352. E-mail: rafael.junior@ifg.edu.br
RESENHAS 211 albuquerque: revista de história, vol. 13, n. 26, jul. - dez. de 2021 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior
RESENHAS 209 albuquerque: revista de história, vol. 13, n. 26, jul. - dez. de 2021 I e-issn: 2526-7280 Rafael Alves Pinto Junior
A travel through the sertão: 200 years of Saint-Hilaire in Goiás Rafael Alves Pinto Junior1 Recebido em: 30 de agosto de 2021. Primeira revisão: 01 de novembro de 2021. Revisão final: 12 de novembro de 2021. Aprovado em: 13 de novembro de 2021. https://doi.org/10.46401/ardh.2021.v13.13913
História
Engenho São Joaquim
Em fins do Século XVIII, mais precisamente em 1795, chega a Meia Ponte o senhor Joaquim Alves de Oliveira. Homem culto, nascido em 1770, em Pilar de Goiás, educou-se junto aos padres jesuítas em São Paulo e desde moço mostrou excelentes dotes para o comércio, fazendo fortuna no Rio de Janeiro. Ao voltar para Goiás, vislumbrou progresso no até então fervilhante arraial de Meia Ponte, que vinha sofrendo franca decadência de suas minas do ouro.
Com a decadência das minas de ouro de Meia Ponte, o senhor Joaquim Alves de Oliveira iniciou a ousada empreita de construir o Engenho São Joaquim, primeiro nome da Fazenda Babilônia, que segundo Pohl, em "Viagem ao Interior do Brasil", era um dos maiores engenhos de açúcar do Brasil. Após o ano de 1800 o Engenho São Joaquim já era considerado como a maior empresa agrícola do Estado de Goiás. Na fazenda, além da cana de açúcar, plantava-se em escala industrial mandioca e algodão para a produção da farinha e fios de algodão para exportação. A Inglaterra, em plena Revolução Industrial comprava toda a produção de algodão goiano, cuja fibra era considerada uma das melhores do mundo. A produção desta fazenda era tão intensa que contava com cerca de 200 escravos, sendo 120 homens para o trabalho e 80 mulheres e crianças.
Um dos relatos mais significantes foi o do viajante francês August Saint-Hilaire ( veja em Arquivo). Neste relato vale destacar entre tantas informações relevantes a importância do Comendador Joaquim Alves para Goiás e Centro-Oeste, a ordem e o asseio da fazenda, as relações com os escravos, a produtividade e o comércio de bens, em especial o algodão para exportação. Saint-Hilaire ainda descreve com maestria a estrutura da fazenda, a maquina de ralar mandioca movida a água e a organização das senzalas e oficinas. Importante registrar aqui que na Fazenda Babilônia estiveram hospedados pessoas ilustres de referência para Goiás, como o próprio Saint-Hilaire, Pohl, Castelnau, D´alincourt, Cunha Mattos e outros.
Devido ao seu grau de empreendedorismo o Comendador pode ser comparado ao Barão de Mauá. Sua renda era muitas vezes superior à renda da província. Através da agricultura e do comércio conseguiu manter a então decadente Minas de Meia Ponte e transformá-la numa das principais cidades do estado. Por Meia Ponte passavam todas as "picadas de Goiás", ´pois era o centro comercial de toda a província de Goiás. Ainda Meia Ponte era a confluência das rotas comercias, recebendo e despachando tropas para Cuiabá, Salvador e Rio de Janeiro. A tropa do Comendador, de quase 300 muares, levava, além dos produtos da fazenda, como o algodão, açúcar e farinha de mandioca, produtos diversos produzidos por outros fazendeiros da região, como o próprio algodão, que o Comendador incentivava e ajudava na produção e no comércio, e trazendo destas viagens produtos essenciais, como o sal e ferros, e outros tantos que lhe eram lucrativos, como tecidos finos e armas. Em algumas ocasiões da partida de sua comitiva, que era capitaneada por seu genro o Sargento-mor Joaquim da Costa Teixeira, iam também, por conforto e segurança, aqueles que desejavam viajar para fora da província, tornando a comitiva uma empreitada solene, de longa duração e com muitos animais, carregamentos e muita gente. Para se ter idéia, gastava, em picadas pelo sertão, 3 meses de viagem para chegar a Salvador ou Rio de Janeiro, e no mínimo mais 3 meses para voltar.
Apesar de não ser o foco de nosso assunto, não há como não deixar de fazer um breve relato sobre a imponente figura do Comendador, que tinha a patente de Tenente-Coronel Comandante Joaquim Alves de Oliveira. Comandante liberal, patriota e humanitário, comprou uma tipografia, a Typographia Oliveira, e editou o primeiro jornal do Centro Oeste, a "Matutina Meiapontense" que circulou de 1830 a 1835, montou a primeira biblioteca de Goiás e trouxe professor para a educação da população. Foi dele a iniciativa de promover a agricultura na província goiana, num momento de decadência da mineração em toda a capitania de Goiás. Além de tudo era homem sábio e justo cuja efígie não deixou gravada, ninguém sabe ao certo como era o rosto deste homem.
Voltando a história da Fazenda babilônia, nela estiveram hospedados pessoas ilustres de referência para Goiás, como o próprio Saint-Hilaire, Pohl, Castelnau, D´alincourt, Cunha Mattos e outros. Porém sua decadência iniciou-se mesmo antes da morte do Comendador, desiludido pela perda da esposa e filhos, e pela desonra da filha num episódio lastimável, pouco a pouco foi se desinteressando pelos negócios e, em 1851, com avançados 81 anos, fez sua passagem para o mundo espiritual. Como não deixou herdeiros, apesar de ter tido três filhos, legou o Engenho São Joaquim, por testamento, ao seu braço-direito, seu genro e Sargento-mor Joaquim da Costa Teixeira.
Das construções e opulência da época do Comendador, muito se perdeu. Sem a presença do Comendador, o comércio decaiu e a fazenda diminuiu sua produção. Até que, em 1864, Joaquim da Costa Teixeira vendeu-a para o Padre Simeão Estelita Lopes Zedes, bisavô da atual proprietária, Dona Telma Lopes Machado.
Padre Simeão comprou, em 1864, parte da Fazenda, e encontrando lá, nesta ocasião, uma grande quantidade de agregados e escravos, achou que aquilo mais se assemelhava à Babilônia e desde então passou a chamar de Fazenda Babilônia. Em 1876, adquiriu mais uma parte da extensa fazenda, e atravessou o fim do século XIX e início do século XX como uma fazenda produtora de gado de corte.
Meia Ponte não resistiu as transformações do fim do século XIX, a morte do Comendador, a abolição da escravatura e a proclamação da república, fizeram com que as rotas comerciais fossem deslocadas, perdendo a então próspera cidade o status de centro mercantil, vindo a invadir o século XX com a economia estagnada, baseada principalmente no gado de corte.
O tempo cumpriu seu papel e desfez a senzala e oficinas, muros e estábulos, sobrando, por determinação da família, o belo casarão, sede da fazenda, com a casa, capela, varanda e o pátio do antigo engenho abrigados por um vasto telhado de duas águas de grandes telhas de barro. Devido a histórica importância a casa e suas dependências foram tombadas em 1965, inscritas no Livro de Belas Artes, nº 480 de 26/04/1965.
Com a construção de Brasília e o incremento do turismo em Pirenópolis, a Fazenda Babilônia tornou, gradativamente, local de visitação. Por iniciativa da atual proprietária, D. Telma, que nutre um incansável amor à história e às coisas de terra, em 1997 a fazenda foi aberta à visitação.
Hoje, a fazenda, além de trabalhar com pecuária, mantém o belo casarão, que preserva ainda cerca de 80% de sua originalidade. O casarão de grossas madeiras expostas, a capela, um pequeno museu de objetos antigos, sua história e o fabuloso e nutritivo café colonial, fazem da Fazenda babilônia a mais representativa fazenda histórica de Goiás, sendo objeto de estudos para teses de graduação e mestrado, pesquisas na área de arqueologia e história, destino de grupos de estudantes de todos os níveis, do médio ao superior, nas áreas de arquitetura, história, cultura e gastronomia.
Uma Fazenda Modelo
"A 5 léguas de Gonçalo Marques parei na fazenda do comandante de Meia-Ponte, Joaquim Alves de Oliveira, para quem o governador da província me tinha dado uma carta de recomendação, tendo nessa ocasião feito grandes elogios a ele. A acolhida que me deu foi perfeita, e passei alguns dias em sua propriedade.
Joaquim Alves de Oliveira amealhara à custa do próprio esforço a sua fortuna, que era considerável. Tinha sido educado por um jesuíta, e parece que absorvera nessa escola o espírito metódico e equilibrado que o fazia sobressair entre os seus compatriotas. A princípio dedicou-se ao comércio, mas como tinha mais pendor para a agricultura, acabou por renunciar quase que inteiramente aos seus interesses mercantis. Não obstante, entregava-se ainda a transações comerciais quando esperava poder obter um lucro razoável. Assim, por ocasião de minha passagem por ali ele tinha acabado de enviar o genro a Cuiabá com uma numerosa tropa carregada de mercadorias variadas. Tinha, porém, o hábito de jamais falar com quem quer que fosse sobre os seus negócios, e ninguém ficava sabendo quando ele ganhava ou perdia dinheiro nas suas transações. Entre os brasileiros que conheci, era ele, talvez, o que tinha mais aversão à ociosidade. "Concedo a meus hóspedes", dizia-me ele sorrindo, "três dias de descanso. Ao cabo desse tempo, porém, descarrego sobre eles uma parte dos serviços da casa". As conversas de Joaquim Alves revelavam que ele era dotado de um grande amor à justiça e de uma religião sem mesquinhez. Era homem de muito senso, de uma grande simplicidade e de uma bondade extrema.
A fazenda, fundada por ele, nunca tivera outro nome a não ser o seu. Tratava-se, inegavelmente, da mais bela propriedade que havia em toda a região de Goiás que eu tinha percorrido. Reinavam ali uma limpeza e uma ordem que eu ainda não vira em nenhuma outra parte. A casa da fazenda era ao rés do chão e nada tinha de extraordinária, mas era ampla e muito bem conservada. Na frente, uma extensa varanda oferecia sombra e ar fresco em todas as horas do dia. O engenho-de-açúcar, conjugado à casa, fora construído de maneira que, da sala de jantar, pudesse ser visto o trabalho que se fazia junto às caldeiras, e da varanda, o que se passava no moinho de cana. Este último dava para um pátio quadrado. O corpo da casa se prolongava numa série de construções, que formavam um dos lados do pátio, nas quais estavam instaladas a selaria, as oficinas do serralheiro, do sapateiro, a sala dos arreios e, finalmente, a cocheira. Outro lado era construído pelos alojamentos dos escravos casados. Esses alojamentos eram cobertos de telhas e divididos em cubículos por paredes até certa altura. Um muro de adobe fechava os dois lados restantes do pátio.
A casa fora organizada desde o princípio com tamanha perfeição que o seu proprietário já não tinha, por assim dizer, necessidade de dar nenhuma ordem. Cada um sabia o que tinha de fazer e tratava de se colocar no seu posto de trabalho por sua própria conta. Para se fazer entender, bastava ao dono, se quisesse, dizer apenas uma palavra ou fazer um simples gesto. No meio de uma centena de escravos não se ouviam ordens gritadas nem se viam homens apressados andando de um lado para o outro, apenas aparentando grande atividade, mas na verdade sem saberem o que fazer. Em toda parte reinavam o silêncio, a ordem e uma tranqüilidade que se harmonizava perfeitamente com a que a Natureza costuma oferecer naqueles climas amenos. Dir-se-ia que um gênio invisível governava a casa. Seu proprietário ficava sentado tranquilamente na varanda, mas era fácil ver que nada lhe escapava e que bastava um rápido olhar para manter tudo sob controle.
As regras estabelecidas por Joaquim Alves quanto ao tratamento dado aos escravos consistiam em mantê-los bem alimentados e vestidos decentemente, em cuidar deles adequadamente quando adoeciam e em jamais deixá-los ociosos. Todo ano ele provia o casamento de alguns, e as mães só iam trabalhar nas plantações quando os filhos já podiam dispensar os seus cuidados. As crianças eram então confiadas a uma só mulher, que zelava por todas. Uma sábia precaução fora tomada para evitar, tanto quanto possível, as ciumadas e as brigas: os quartos dos solteiros ficavam situados a uma boa distância dos alojamentos dos casados.
O domingo pertencia aos escravos. Eles não tinham permissão para ir procurar ouro, mas recebiam um pedaço de terra que podiam cultivar em seu próprio proveito. Joaquim Alves instalara em sua própria casa uma venda onde os negros podiam comprar as coisas que geralmente são do agrado dos africanos. Nas suas transações o algodão fazia o papel do dinheiro. Dessa maneira ele livrava os escravos da tentação do roubo, estimulava-os ao trabalho acenando-lhes com os lucros de suas lavouras, fazia com que se apegassem ao lugar e ao seu senhor, ao mesmo tempo que aumentava a produção de suas terras.
Durante minha permanência na casa do comandante de Meia-Ponte visitei as várias dependências de sua fazenda, o chiqueiro, o paiol, o moinho de farinha, o local onde era ralada a mandioca e onde ficava instalada a máquina de descaroçar o algodão, a fábrica de fiação, etc. etc., e em toda parte encontrei uma ordem e uma limpeza incomparáveis. Os fornos do engenho-de-açúcar não tinham sido feitos de acordo com as especificações da técnica moderna. Seu aquecimento era feito pelo lado de fora, o que pelo menos tornava menos penosa para os trabalhadores a operação de cozimento. Um tambor horizontal movido a água punha em movimento doze pequenas máquinas de descaroçar algodão. Era também a água a máquina de ralar mandioca, da qual darei aqui uma descrição. A casa onde se achava instalada era construída sobre estacas e embaixo do assoalho fora colocada uma roda em posição horizontal, que era movida pela água que caía de uma calha em plano inclinado. O eixo da roda atravessava o assoalho e se elevava até certa altura, tendo na extremidade outra roda horizontal cujo aro era revestido por um ralo de metal. O eixo e a roda superior ficavam encaixados dentro de um quadrado formado por quatro estacas,cada uma das quais tinha uma chanfradura na parte interna, ao nível do ralo. Quando a roda começava a girar, quatro pessoas seguravam as mandiocas, encaixando-as nas chanfraduras. Tendo esse ponto de apoio, seus braços podiam manter-se firmes e a ação da máquina não sofria interrupção.
Numa parte de suas terras o comandante de Meia-Ponte tinha deixado de lado o método primitivo adotado geralmente pelos brasileiros em suas lavouras. Passara a usar o arado e adubava a terra com o bagaço da cana. Dessa forma não havia necessidade de queimar novas matas todo ano. A cana era replantada sempre no mesmo terreno, que ficava situado perto da casa para facilitar a supervisão do dono e poupar tempo aos escravos. O açúcar e a cachaça eram vendidos em Meia-Ponte e Vila Boa, mas o algodão era exportado para o Rio de Janeiro e Bahia. Joaquim Alves foi o primeiro, como já disse, a demonstrar a vantagem dessas exportações, e seu exemplo foi seguido por vários outros colonos. Por ocasião de minha viagem ele estava planejando aumentar ainda mais suas plantações de algodão e tinha intenção de instalar no próprio arraial de Meia-Ponte uma descaroçadora, bem como uma fiação onde pretendia empregar as mulheres e as crianças sem trabalho. Depois de descaroçado, o algodão da região, cuja qualidade é excelente, era vendido no local a 3.000 réis a arroba. O transporte de Meia-Ponte à Bahia custava 1.800 réis a arroba, e até o Rio de Janeiro 2.000. O lucro obtido com as exportações a esse preço era tão garantido que Joaquim Alves não vacilara em se oferecer para comprar, à razão der 3.000 réis, o algodão produzido por todos os agricultores das redondezas.
Ao dedicar sua atenção a um produto que podia ser exportado com proveito, o comandante de Meia-Ponte incentivava seus compatriotas a tomar novos rumos, indicando-lhes o que devia ser feito para arrancar sua região do estado de penúria em que a mergulhara uma exportação do ouro mal orientada. Enquanto ele agia de maneira prática, vários de seus concidadãos afirmavam que só havia salvação para a província numa ideia absurda apresentada por Luís Antônio da Silva e Souza. Segundo eles, a única maneira de deter a decadência sempre crescente da província seria impedir a saída do ouro para fora de suas fronteiras, criando-se para isso uma moeda provincial. Poder-se-ia argumentar, entretanto, que se essa moeda não tivesse valor como metal não haveria força humana capaz de lhe dar algum crédito. Se, pelo contrário, ela fosse de cobre, de ouro ou de prata, acabaria saindo da província de uma forma ou outra, por mais rigorosa que fosse a proibição, como acontecem todos os dias com o ouro em pó. Uma vez fora de suas fronteiras, porém, ela só seria aceita pelo seu valor intrínseco, e em conseqüência os comerciantes de Goiás passarão a vender suas mercadorias por um preço que compense a sua desvalorização. O ouro adulterado que circula em Goiás já pode ser considerado uma espécie de moeda provincial, pois só é aceito ali, e quando o comerciante o remete para fora ele se vê obrigado a reduzi-lo ao seu valor real, purificando-o, para em seguida reajustar os seus preços de acordo com a redução de peso sofrida pelo ouro.
Depois de tantas jornadas tediosas e cansativas através dos sertões, senti-me feliz por me achar numa casa que reunia todo o conforto que a região podia oferecer, onde eu gozava de inteira liberdade e cujo proprietário, um homem esclarecido, tinha por mim toda consideração. O tempo que passei na casa de Joaquim Alves foi muito proveitoso. Meus homens fizeram uma esplêndida caçada nas margens de uma lagoa situada nas proximidades. Quanto a mim, passei para o papel uma parte dos dados que recolhera sobre vários assuntos e obtive novas informações em conversas com meu hospedeiro.
Deixei a fazenda cheio de gratidão pela excelente acolhida que me deu o seu proprietário e me dirigi a Meia-Ponte, distante dali uma légua."
Relato de viagem do naturalista francês August Saint-Hilarie durante a sua estada na Fazenda Babilônia em 1819.
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